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VOZES DA ABRAPSO – Estão me vendo? Me ouvindo? Caiu!

Mirella Martins Justi

Vanessa Meirelles

O texto aqui apresentado é fruto de inquietações de duas professoras frente ao que parece estar posto neste momento de enfrentamento à pandemia do novo coronavírus: a migração compulsória das aulas do mundo presencial para o virtual.

Se antes desse cenário ainda ouvíamos, em alto e bom som, os protestos da resistência, a imposição do uso da modalidade remota também impôs aos seus opositores, um perigoso silêncio! Seria tudo fruto da sobrecarga para atendermos a demandas que surgiram, literalmente, da noite para o dia, trazendo a reboque os novos papéis sociais de professor e aluno virtuais? De um lado, profissionais de carne e osso que, convocados a incorporar a “tecnologia da vez” em sua rotina de aulas, desistem, resistem ou se reinventam – regulação sistêmica ou construção emancipatória? De outro lado, alunos e suas famílias, com as vidas privadas invadidas pelos conteúdos e tempos escolares, em um país onde impera o precário acesso à infraestrutura necessária para o mundo que se propõem construir – aprender ou apenas seguir o script?

Imaginar o ensino à distância como um acontecimento do século XXI revela um desconhecimento do que vem acontecendo em nosso país desde os idos de 1900. Com slogans atraentes e promessas bastante conhecidas dos alunos deste nosso século, a modalidade já atraía clientes vindos de todos os cantos há mais de 100 anos, como vemos nesse trecho veiculado em anúncios no Estado de São Paulo no início da década de 40: “Agora é muito fácil estudar! Falta de tempo, dificuldade de transporte, idade? . . . Todos esses obstáculos estão vencidos pelo ensino de correspondência” (Saconi, 2013, para. 3). Soa familiar?

Cecília Pescatore Alves (2017), educadora e psicóloga social, publicou um artigo sobre as políticas de identidade e as políticas para a educação, onde nos lembra que “todos os fenômenos sociais e humanos são históricos e produzidos a partir da vida material, a qual se constitui em um processo de transformação constante, revelador de um movimento que tem por base a contradição” (p. 2). Não faria sentido, portanto, defendermos uma suposta volta à “normalidade”, uma vez que a educação não visa, na ordem sistêmica, o desenvolvimento de identidades políticas, ou seja, de sujeitos críticos e autônomos; pelo contrário, objetiva  formar indivíduos que possam suprir as demandas desta ordem. Qual seria, então, o movimento contrário?

Quando buscamos por definições oficiais do que seria o ensino a distância (EAD), o portal do Ministério da Educação (2018) nos informa que esta “é a modalidade educacional na qual alunos e professores estão separados, física ou temporalmente” (para. 1). A necessidade de utilização de meios e tecnologias de informação e comunicação vieram para minimizar este afastamento, criando um outro espaço no qual as interações e relações de ensino-aprendizagem possam se desenvolver. Seria isso o que estaria acontecendo atualmente?  Seria esse o novo avatar da educação e da socialização?

Partindo da ideia de que a nossa vida material e nosso mundo objetivo mudaram, é possível pensar que também mudaram os pressupostos acerca dos papéis sociais de pais, professores e alunos. Quando falamos em interação social no espaço escolar, pensamos nas relações mediadas pela linguagem, estabelecidas entre professores e alunos, ou melhor, entre “ensinantes e aprendentes”, como diria a psicopedagoga Alicia Fernández (2001) que, já no século passado, tratava dos vínculos que envolvem as relações de ensino-aprendizagem e as mudanças nos papéis de quem ensina e de quem aprende.

O que pensar desse “novo normal” em que tanto a linguagem, como o espaço, não são mais os mesmos? O professor de carne e osso não está mais lá – nem sua identidade pressuposta. Em seu lugar entra um rosto, com voz metálica e fala cronometrada, para caber entre uma falha e outra do sistema, intercalada pelos tediosos e previsíveis: “Estão me ouvindo? Estão me vendo?”. Estudioso brasileiro da identidade humana, Antônio da Costa Ciampa (1997) nos lembra que a identidade do outro reflete na minha e a minha na dele. O que dizer dos novos alunos desses novos professores? De que forma se vinculam a uma face sem corpo, em uma única dimensão, monólogos eternizados nas suas telas domesticadas?

A ninguém foi perguntado se algo diferente era possível. A urgência de lidar com o que parece estar posto é a nova realidade; é a nova determinação exterior que afetará todas as metamorfoses identitárias singulares. Haverá espaço para o novo?

Em recente publicação, Boaventura de Souza Santos (2020) nos convida a pensar nas possíveis alternativas que a pandemia e a quarentena nos revelam, sobre novos sentidos e modos de viver que correspondam ao bem comum, permitindo que se pense em alternativas de existência, de produção, de consumo e de convivência nestas primeiras décadas do século XXI. Este convite nos inspira!

 Tinha um vírus no meio do caminho. No meio do caminho tinha um vírus.

 O trocadilho é uma homenagem ao poeta Drummond que disse que nunca se esqueceria de um acontecimento, da tal pedra no meio do caminho. Acreditamos que a “pedra pandêmica” promove a interrupção da reposição acrítica daquilo que é naturalizado, do caminhar irreflexivo da vida cotidiana trazendo, assim, quem sabe, algumas oportunidades de confrontarmos as contradições.

Se há mais de cem anos o ensino a distância era uma alternativa ao enfrentamento das deficiências do sistema educacional no Brasil, quantas possibilidades estariam escondidas nesse nosso momento? O que poderia vir depois do mal-estar gerado pela imposição, goela abaixo, do EAD? Seguimos perguntando: apesar do cansaço generalizado é possível vislumbrarmos caminhos para possíveis intervenções pós-isolamento que apontem para a superação de situações de opressão/heteronomia e a emancipação enquanto possibilidade real?

Não há inevitabilidade da história, nem regulatória, nem emancipatória. Por um lado, é preciso considerar que a lógica sistêmica é perversa; nela estão implícitas políticas de identidade nas quais o sucesso individual é valorizado e garantido pela obtenção do diploma, do “batismo institucional do saber”; no entanto, o que se vê é o aniquilamento da educação pública com políticas de inclusão cultural facilitadora da ascensão do tecnicismo e da privatização da educação, deixando de fora grande parcela da população brasileira e, consequentemente, intensificando a exclusão social.

Por outro lado, retomando Ciampa (2005), nada está dado permanentemente, ou seja, nada indica que o sujeito – enquanto coletividade – não possa reagir e construir novas possibilidades identitárias. A emancipação é uma possibilidade e, como tal, exige resistência e construção coletiva, precisa ganhar força, caso contrário… a pedra será apenas uma pedra.

Referências:

Alves, C. P. (2017). Políticas de identidade e políticas de educação: estudo sobre identidade. Psicologia & Sociedade, 29, e172186. Epub December 18, 2017. https://doi.org/10.1590/1807-0310/2017v29172186 (Acesso em 19 maio 2020).

Ciampa, A. C. (2005). A estória do Severino e a história da Severina: um ensaio de psicologia social. (10a.ed.). São Paulo: Editora Brasiliense.

Ciampa, A. C. (1997). Identidade humana e as metamorfoses das metamorfoses. In: Ciampa, A. C., Gergen, K., Scheibe, K., & Zavaloni, M. Metamorfoses da identidade no mundo contemporâneo. Apresentação de Trabalho/Simpósio no Encontro Nacional da ABRAPSO. (mimeo) p.1.

Fernández, A. (2001) O Saber em jogo: A Psicopedagogia propiciando autorias de pensamento. Porto Alegre: Artmed Editora.

Ministério da Educação, [MEC]. O que é educação à distância? Recuperado de http://portal.mec.gov.br/component/content/article?id=
12823:o-que-e-educacao-a-distancia (Acesso em 19 de maio de 2020).

Saconi, R. (2013, 29 de julho). Educação a distância começou por correio. Estadão. Recuperado de https://acervo.estadao.com.br/noticias/
acervo,educacao-a-distancia-comecou-por-correio,9176,0.htm (Acesso em 19 maio de 2020).

Santos, B. S. (2020). A cruel pedagogia do vírus. Coimbra: Edições Almedina.

Mirella Martins Justi
Doutoranda em psicologia social pela PUC/SP
Pesquisadora do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa sobre a Identidade Humana PUC/SP
Psicóloga, professora e coordenadora do curso de Psicologia do UniSalesiano de Araçatuba/SP
Associada pela Regional São Paulo da ABRAPSO.

Vanessa Meirelles
Mestranda em psicologia social pela PUC/SP
Pesquisadora do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa sobre a Identidade Humana PUC/SP
Coordenadora de projetos da Associação Sócio Educacional FabricAções
Psicopedagoga clínica. Professora de Língua e Literatura Inglesa.
Pedagoga e professora de Suporte ao Ensino no Colégio Saint Paul’s
Associada pela Regional São Paulo da ABRAPSO.

Recebido em 26/05/2020.
Aprovado em 14/07/2020.
Comissão editorial das publicações eletrônicas Vozes da ABRAPSO
Publicado em 16/07/2020.