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VOZES DA ABRAPSO – Impactos psicossociais do/no contexto pandêmico

Aline Daniele Hoepers

Resumo: O atual cenário de crise, desencadeado por consequências variadas da pandemia do coronavírus, tem suscitado uma profusão de reações nas mais variadas dimensões da vida humana. O objetivo deste texto se volta a proposição de reflexões sobre o modo como as transformações engendradas pela pandemia da Covid-19 têm operado na vida de brasileiras e brasileiros, a partir de marcadores sociais, como classe, raça, gênero e territorialidade. Embora, invariavelmente, estejamos suscetíveis a ser afetadas e afetados, direta ou indiretamente, pelo vírus e/ou pelas transformações advindas das múltiplas afetações por ele causadas ou amplificadas, o modo como este fenômeno complexo ecoa na vida humana admite, necessariamente, particularidades locais. A partir disso torna-se, inclusive, possível conjecturar que populações que já vinham sendo impactadas por privações, riscos ou vulnerabilidades diversas têm, no presente contexto, estas desigualdades aprofundadas.

O ser humano, constituído nas e pelas relações humanas, vive em permanente processo de inter-relação com os elementos mais diversos do contexto e, por isso, está em contínua construção (Guareschi, 2008). Os movimentos dinâmicos da história, da economia, da política, das sociedades reverberam nos processos psicossociais constitutivos dos sujeitos e, por eles, tal contexto também é impactado e transformado.

O atual cenário de crise, desencadeado pelas multifacetadas consequências da pandemia do coronavírus, tem suscitado uma profusão de reações nas mais variadas dimensões da vida humana. Impactos nas formas de comunicação, de relação, de trabalho. Implicações nas dimensões emocional, econômica, física. Restrições, exigências por reinvenções, incertezas. Somos, inevitavelmente, afetadas e afetados.

Agnes Heller (1993), ao abordar a noção de sentir, destaca que somos permanentemente afetados pelas outras pessoas, pelas informações, por nós mesmos, pelos acontecimentos, pelo mundo de forma geral. Sob essa perspectiva, sentir, enquanto processo relacional, dimensiona-se como possibilidade de estar envolvido e, nesse processo, impactar-se e também gerar efeitos múltiplos, diversos.

Partindo dessas inquietações, a problemática sobre a qual e com a qual se pretende dialogar neste texto diz respeito ao modo como as transformações engendradas pela pandemia do COVID-19 têm operado na vida de brasileiras e brasileiros, a partir de marcadores sociais, como classe, raça, gênero e territorialidade. Tais nuances se inter-relacionam na constituição dos sujeitos humanos, como também se dimensionam como faces sobre as quais se amalgamam e estruturam opressões.

Estas discussões se desenham como um convite a algumas reflexão sobre possíveis arranjos de efeitos psicossociais na vida humana na atual e complexa conjuntura pandêmica.

Para tanto, na contramão de uma lógica científica linear, supostamente objetiva e neutra, implicada com a descoberta de algo, esta proposta dialoga com fundamentos teórico-metodológicos interdisciplinares que se alinham ao movimento construcionista social. Sob esse prisma, o processo de construção de conhecimento se constrói por meio das interações que as pessoas estabelecem entre si, criando sentidos novos (Gergen, 1985; McNamee, 2014).

É, portanto, a partir de uma postura de engajamento e não neutralidade (Corradi-Webster, 2014), que as reflexões provisórias, aqui propostas, visam refletir criticamente e (co)criar sentidos sobre o tema em questão.

Embora, invariavelmente, estejamos suscetíveis a ser afetadas e afetados, direta ou indiretamente, pelo vírus e/ou pelas transformações advindas das múltiplas afetações por ele causadas ou amplificadas, o modo como este fenômeno complexo ecoa na vida humana admite, necessariamente, particularidades locais. A pluralidade que marca os sujeitos sociais, atravessados por questões históricas, socioeconômicas, étnicas, psicossociais, demográficas, subjetivas, exige destaque, caso contrário incorremos no risco de apenas reproduzir discursos universalizantes e práticas hegemônicas, cuja tendência leva a crer que as pessoas vão se impactar da mesma maneira e possuem os mesmos repertórios psicossociais e recursos materiais para lidarem com os desafios postos.

Pessoas, famílias, comunidades de regiões distintas são afetadas de modos também distintos. Essas mesmas pessoas ou famílias, dentro de uma mesma região, mas pertencendo a classes sociais diversas também sofrem efeitos com contornos diversos. Esses mesmos sujeitos, se em condição de desemprego ou resguardados pela possibilidade de trabalhar em casa, são impactados de modos e de lugares diferentes. Essas pessoas, se homens ou mulheres, se negras, brancas ou indígenas, são sobremaneira impactadas de maneiras particulares e, na maioria das vezes, também desiguais. Mulheres em situação de violência doméstica estão experienciando um enclausuramento dentro de outro enclausuramento. As pessoas em situação de rua vivendo a exclusão da exclusão…

Esses e outros tantos arranjos de impactos psicossociais neste cenário atravessado pelos efeitos da propagação do vírus revelam que estamos diante do agravamento de “formas conjugadas de opressão” (Hirata, 2014). O aprofundamento de desigualdades, vulnerabilidades, riscos, desamparos se escancara na vida cotidiana, nos noticiários, nas estatísticas. Os levantamentos apresentados a seguir exemplificam esse argumento e reiteram a profundidade das ilustrações acima trazidas.

Pesquisa realizada pelo Programa Cidades Sustentáveis indica a relação entre o número de vítimas da atual pandemia e a renda da população (Cândida, 2020). Segundo dados levantados junto as capitais brasileiras, aquelas com maior quantitativo de pessoas abaixo da linha da problema apresentam maior taxa de mortalidade por COVID-19, como por exemplo, Manaus, Recife e São Luís. Por outro lado, as capitais que possuem os melhores índices relacionados à pobreza revelam nível de mortalidade inferior às demais, como é o caso de Florianópolis.

Levantamento realizado pelo Observatório Social do Coronavírus, vinculado ao Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Martins, 2000), destacou, por exemplo, que dados oficiais do Estado do Ceará indicam correlação entre índices de mortalidade mais elevados com variáveis como moradia e condições socioeconômicas. O estudo analisa dados de municípios cearenses em que tais disparidades se evidenciam e conclui que elementos como condições precárias de habitabilidade e falta ou precarização de serviços básicos são fatores que aprofundam as marcas das desigualdades sociais em tempos de pandemia.

O Observatório da Mulher contra a Violência (Senado Federal, 2000) lançou boletim informativo sobre a análise do conjunto de dados disponível no atual contexto quanto à incidência de violência doméstica contra mulheres. O documento oficial salienta que há indícios de que, em decorrência do isolamento social, que se delineia como medida preventiva importante ao enfrentamento à pandemia do COVID-19, tem havido crescimento do número de situações agudas desta violência. Destaca, a título de exemplo, que o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro registrou aumento de 50% nos casos durante o período de confinamento de março e abril.

Tais dados sublinham que a realidade brasileira, historicamente marcadas por desigualdades de diversas ordens, experimenta, no presente, um momento complexo ante a propagação crescente da transmissão do vírus e dos consequentes efeitos plurifacetados.

É tempo de nós interrogarmos, enquanto sociedade, acerca de facetas, como as aqui discutidas, comumente silenciadas ou tratadas como não prioritárias. Permitir que nosso olhar se implique com estas nuances que se incorporam às tessituras da vida humana e se entretecem às singularidades do contexto pandêmico atual se coloca como um modo ético-político de tensionar e colaborar com a (co)construção de sentidos no campo científico e na vida cotidiana.

Referências

Cândida, A. (maio, 2020). Mapa da desigualdade: renda e mortalidade por COVID-19 nas capitais brasileiras. Programa Cidades Sustentáveis. Recuperado em 26 maio, 2020, de https://www.cidadessustentaveis.org.br/noticia/detalhe/3013?fbclid=IwAR27hpqmalIexz0Mo2FQD0eYQOQ-q1gWl3jWqoef0uWcgD0cyfPOFKzyU5w.

Corradi-Webster, C. M. (2014). Ferramentas teórico-conceituais do discurso construcionista. In C. Guanaes-Lorenzi, M. S. Moscheta, C. M. Corradi-Webster & L. V. Souza (Orgs.). Construcionismo Social: discurso, prática e produção do conhecimento. Rio de Janeiro: Instituto Noos. (pp. 73-87).

Gergen, K. J. (1985). The social constructionist movement in modern psychology. American Psychologist, 40(3), 266-275. Recuperado em 22 maio, 2020, de https://www.researchgate.net/publication/302871718_The_Social_Constructivist_Movement_in_Modern_Psychology.

Guareschi, P. A. (2008). Ética e relações sociais entre o existente e o possível. In: M. G. C. Jacques, M. L. T. Nunes, N. M. G. Bernardes & P. A. Guareschi (Orgs). Relações Sociais e Ética. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais. (pp. 6-11).

Heller, A. (1993). Teoria de los Sentimientos (3a ed.). México: Editorial Fontamara S. A.

Hirata, H. (2014). Gênero, classe e raça: interseccionalidade e consubstancialidade das relações sociais. Revista de Sociologia da USP, São Paulo, 26(1), 61-73. Recuperado em 25 maio, 2020, de https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-20702014000100005.

Martins, M. D. (abril, 2020). A pandemia expõe de forma escancarada a desigualdade social. Observatório Social do Coronavírus. Conselho Latino-americano de Ciências Sociais. Recuperado em 25 maio, 2020, de https://www.clacso.org/a-pandemia-expoe-de-forma-escancarada-a-desigualdade-social/.

McNamee, S. (2014). Construindo conhecimento / construindo investigação: coordenando mundos de pesquisa. In C. Guanaes-Lorenzi, M. S. Moscheta, C. M. Corradi-Webster & L. V. Souza (Orgs.). Construcionismo Social: discurso, prática e produção do conhecimento. Rio de Janeiro: Instituto Noos. (pp. 105-131).

Senado Federal. (abril, 2020). Boletim Mulheres e seus Temas Emergentes: Violência doméstica em tempos de COVID-19. Recuperado em 24 maio, 2020, de https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/pdfs/violencia-domestica-em-tempos-de-covid-19.

Aline Daniele Hoepers
Graduada em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá.
Mestra e Doutoranda em Psicologia pela mesma Universidade.
Especialista em Proteção Social pela Universidade Estadual do Paraná.
Psicóloga Judiciária no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
Integrante do Projeto de Pesquisa Psicologia Social dos Afetos.
Associada pelo Regional São Paulo da ABRAPSO.

Recebido em 31/05/2021.
Aprovado em 11/06/2021.
Comissão editorial das publicações eletrônicas Vozes da ABRAPSO
Publicado em 12/06/2021.