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VOZES DA ABRAPSO – Pedido universal à respiração

Débora Inêz

O presente texto é a problematização do aparente paradigma comum que a realidade do Covid-19 traz enquanto produção de sensibilidade aos sujeitos. A aposta teórico – conceitual é de que o momento de pandemia traz à tona uma vontade de vida onde no Brasil é primada a política de morte. Ela é aprofundada na dimensão dos efeitos de contaminação que os corpos podem exercer entre si quando, não somente através das correntes  virais, a finitude de alguns sujeitos é lembrada todos os dias, seja pelo tiro nas costas ou pelo enforcamento compulsório em operações policiais. Tal relação faz com que alguns sujeitos assumam o paradoxo pelo pedido universal à respiração sem constrição; onde o imperativo presente é de que possamos respirar somente em casa.  

No dia 26 de fevereiro foi confirmado o primeiro caso de Covid-19 no Brasil. Nesse mesmo dia, mulheres e homens estavam no seu último dia de carnaval, sem ainda se dar conta de que os cinco dias anteriores eram os últimos em que poderiam viver , pela plenitude de suas respirações, o imperativo do prazer que corpos brasileiros propagam entre si se fantasiando, trocando de personagens, beijando, abraçando, tocando, pisando e andando, ou seja todos os atos que hoje não podemos fazer sem estarmos diante do impasse entre a vontade de vida e a possibilidade da morte. O interdito do toque entre os corpos é o bem necessarius – termo latino que não significa aquilo de que se está necessitado, mas aquilo que não pode ser de outra maneira: aproximação máxima de até um metro e meio e interação possível somente pelo toque nos dispositivos através dos quais projeções de imagens nos chegam por conexões via fibra ótica.

O vírus ganha vida pela certeza de que ele é um existente. A discussão bélica se o vírus é ou não é um ser vivo é transmutado na concretude de que mesmo não tendo DNA próprio, ele se propaga pelo contato da superfície com seres vivos, reproduzindo seu material genético pela replicação de ribossomos das células invadidas – por isso o vírus enquanto RNA. Não importa sua complexidade, ele consegue se reproduzir em segundos. A dimensão zoé – termo grego que significa o fato da vida, ou a vida enquanto organismo – deixa de ser a inscrição suprema do homo sapiens quando estamos diante de um contágio transpassado pelos poros, adentrado pelo ouvido, boca e olhos e capaz de efetivamente fazer morrer nossas células: o corpo vivo imediatamente ao lado das correntes virais do ar. Nossa guerra é na dimensão microscópica:  poros e suor; epidermes e superfícies; encontro e isolamento. Coletivamente adotamos a certeza de que a empreitada da escolha diária entre a vida e a morte concerne a  todos nós,  trazendo à reflexão do que é o nosso modo de ser e nossas práticas – somos a comunidade mundial integrada tendo a oportunidade de relembrar que só vivemos pela respiração do ar que entra e sai a cada instante do espaço que chamamos de nosso.

Entretanto, tal dilema é o compasso atravessado por um campo de abertura sendo barrado da sua efetivação por si mesma. Danichi Hausen Mizoguchi e Eduardo Passos dissertam em texto publicado pela “N-1 Edições” no projeto de exibições escriturais de pensadores no contexto de pandemia, chamada Pandemia crítica, que o caráter microbiológico da morte jaz no governo e “mais do que isso, ecoando todos os lemas fascistas, é apaixonado pela morte” (2020, p.3): a dimensão afetiva e efetiva caminhando juntas numa política em que o jogo dado é a morte em prol da vida de alguns. No campo abrasileirado do fascismo a dança sombria daqueles que morrem e vivem é flechado pela relação de uma branquitude querendo ser europeia e do preto querendo apenas viver. O fascismo é tropical na medida em que alguns brasileiros não suportam a dimensão afetiva da qual a nação adere sua potência, como diz Caetano, encontrada “entre a delícia e a desgraça, entre o monstruoso e o sublime” (VELOSO, 1992).

O modo fascista tropical é o encontro liame entre a vontade de vida e a possibilidade de morte a partir do qual é insuportável admitir o éthos brasileiro em que viver é ser contagiado: é ser vida com o outro. Michel Foucault, quase ao final de sua vida, elucida muito bem a dimensão ética do cuidado de si e cuidado do outro frente a um relação de poder biopolítico que a modernidade instaura – dimensão do afeto que encontramos especialmente nas comunidades quilombolas, nas tribos indígenas que sempre estiveram aqui tentando compor uma maneira de se viver com suas existências e nas grandes favelas desse Brasil em que um dos pedidos é que apenas possamos descer e subir o morro sem ser mortos.

George Floyd morreu em uma calçada sob holofotes de aparelhos celulares, emitindo repetidas vezes uma frase: não consigo respirar. Um adolescente de catorze anos chamado João Pedro morreu com tiros nas costas dentro de casa, e a frase emitida por quem estava perto dele foi: aqui só tem criança. Nos Estados Unidos as manifestações foram severas: a memória do apartheid na epiderme dos sujeitos negros é uma questão civil. Aqui, a relação identitária de quem é preto alcança o âmago da representação da raça, mesmo que todos nós sejamos filhos e filhas de mães pretas e indígenas: o problema é de direito penal. A pulsão ética preta brasileira fez-se valer mais pela força dos pés nas ruas do que pela vontade de destruir qualquer matéria dita branca.

Assumindo a possibilidade de infecção viral e a sua proliferação, dizemos que estamos ocupando as ruas porque nos matam em casa. No Brasil, a vontade de vida faz-se à sombra constante da morte. O direito à vida está selado ao pedido universal à respiração sem máscaras. De sermos só pessoas.

Referências:

CASO George Floyd: morte de homem negro filmado com policial branco com joelhos em seu pescoço causa indignação nos EUA. G1, Mundo, 27 de Maio de 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/05/27/caso-george-floyd-morte-de-homem-negro-filmado-com-policial-branco-com-joelhos-em-seu-pescoco-causa-indignacao-nos-eua.ghtml

GRITAMOS que só tinha criança, e tacaram duas granadas e deram muitos tiros’, diz testemunha da morte de João Pedro, RJ. G1, Rio de Janeiro, 25 de maio de 2020. Disponível em https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/05/20/gritamos-que-so-tinha-crianca-e-tacaram-duas-granadas-e-deram-muitos-tiros-diz-testemunha-da-morte-de-joao-pedro.ghtml

LEVANTE antirracista: atos no Brasil e EUA dizem “vidas negras importam”. IG, São Paulo, 6 de junho de 2020. Disponível em: https://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2020-06-06/levante-antirracista-atos-no-brasil-e-eua-dizem-vidas-negras-importam.html

MBEMBE, Achille. O direito universal à respiração. N-1; 2020. disponível em https://n-1edicoes.org/020

MIZOGUCHI, Danichi Hausen & PASSOS, Eduardo. Epidemiologia Política. N-1; 2020.  disponível em https://n-1edicoes.org/015

VELOSO, Caetano. Americanos. Em: Circuladô Vivo, faixa 2, 19925

Débora Inêz
Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense
Integrante do projeto de pesquisa de iniciação científica “Da subjetividade à coragem: modulações da verdade nos últimos cursos de Foucault.”
Associada pelo Regional Rio de Janeiro da ABRAPSO

Recebido em 22/06/2020.
Aprovado em 14/07/2020.
Comissão editorial das publicações eletrônicas Vozes da ABRAPSO
Publicado em 21/07/2020.