Raíssa Maria Alves Soares Costa
O Bolsa Família configura-se como um programa voltado para famílias e indivíduos em situação de pobreza e extrema pobreza, cujo principal objetivo é contribuir para a superação dessa situação por meio da transferência direta de renda. Além disso, busca ampliar o acesso a serviços públicos que representam direitos básicos nas áreas de Saúde, Educação e Assistência Social, por meio das condicionalidades, contribuindo para que as famílias rompam o ciclo intergeracional de pobreza. O programa atende cerca de um quarto da população brasileira, contando com um sólido instrumento de identificação socioeconômica, o Cadastro Único, que possibilita a transferência de renda de acordo com as diferentes características de cada família.
O Programa Bolsa Família (PBF) foi criado em 2003, no primeiro ano do governo de Luís Inácio Lula da Silva, e partiu da reorganização de programas de transferência de renda preexistentes. A coexistência de uma multiplicidade de programas de transferência de renda acarretava problemas de coordenação, cadastro e focalização e, em vista disso, o governo federal unificou os programas através do PBF, em outubro de 2003, por meio da Medida Provisória nº 132, convertida na Lei no 10.386/2004 (THOMÉ, 2012). Contudo, a mudança foi além de uma simples unificação de programas, pois houve ampliações tanto em relação à cobertura do programa quanto em relação ao benefício concedido. Em maio de 2006, o programa já estava implantado em 99,9% dos municípios brasileiros, e o número de famílias beneficiárias havia saltado de cerca de 6 milhões, em 2004, para cerca de 11 milhões, em 2006. Em seguida, a cobertura cresceu de forma mais gradual, atingindo 14 milhões de famílias em 2014, patamar no qual o programa permanece, com poucas oscilações (SOUZA et al., 2019).
Houve uma série de dificuldades a serem enfrentadas na implantação do Programa Bolsa Família, a maioria delas relacionadas aos preconceitos que pairavam sobre os efeitos de um programa abrangente de transferência direta aos mais pobres, tais como as crenças de que as famílias teriam mais filhos para acessar mais recursos, de que o programa geraria dependência e desincentivaria o trabalho, além das acusações de que o Programa seria populista. Todavia, conforme assinalam Campello & Neri (2014), esses mitos provaram-se infundados, pois o declínio da fecundidade tem sido maior entre os mais pobres e nos estados com maior cobertura do PBF, não há evidências de desestímulo ao trabalho ou à formalização, e o Programa se consolidou como um dos elementos centrais da proteção social brasileira, tornando-se referência em tecnologia de transferência de renda condicionada a nível internacional.
Marques e Mendes (2007) salientam que a centralidade e importância do Bolsa Família no combate à pobreza justificaria tratar a renda concedida pelo PBF como um direito, e não apenas como um programa, passível de ser extinto ou modificado sem que a sociedade brasileira tome parte nessa decisão, pois não se constituindo um direito, a continuidade do Bolsa Família fica ao sabor da prioridade do presidente de plantão. Exemplo eloquente da afirmação das autoras foi a recente mudança de postura do presidente Jair Bolsonaro, antes, crítico bravio do PBF, tendo detratado o programa publicamente por diversas vezes, atualmente passou a defender mudanças no Bolsa Família. Conforme destacado em reportagem do Correio Braziliense, os comentários mais duros de Bolsonaro, a respeito do Bolsa Família, ocorreram durante sessões ordinárias da Câmara dos Deputados. “Em agosto de 2010, por exemplo, então deputado federal pelo Rio de Janeiro, Bolsonaro argumentou que o Bolsa Família seria uma espécie de moeda de troca, a fim de comprar votos no Nordeste” (FORTUNA, 2019, online). Em 2011, também em discurso na Câmara dos Deputados, afirmou a necessidade de acabar com o programa que, de acordo com ele, deixava os beneficiários acomodados (DINIZ, 2020). Chegou também a afirmar, em entrevista, que os beneficiários do Bolsa Família viviam à custa do governo e não produziam nada (DINIZ, 2020).
A mudança de postura de Bolsonaro ocorreu principalmente após se tornar oficialmente candidato à presidência da República e, recentemente, após um aumento de popularidade alcançada à custa do Auxílio Emergencial no período da pandemia. Nessa conjuntura, em 09 de agosto de 2021, por meio da Medida Provisória nº 1.061, instituiu o Programa Auxílio Brasil e anunciou o fim do Programa Bolsa Família. Em tese, o Auxílio Brasil começará a ser pago em novembro e terá reajuste linear de 20%, em relação ao valor pago pelo PBF, além disso, um complemento deve ser pago por meio de um auxílio extra e temporário, com validade até o final do mandato de Jair Bolsonaro, em dezembro de 2022, para que todos os beneficiários recebam, pelo menos, R$ 400,00. Ocorre que, aumentar o valor do benefício apenas até o fim do ano eleitoral não pode ser considerado como política pública séria de enfrentamento à pobreza, soando apenas como estratégia com vistas à reeleição.
Ressalta-se que a criação do Auxílio Brasil não é um aprimoramento do PBF, ou mera mudança de nomenclatura, mas o encerramento do maior programa de transferência condicionada de renda do país, cujos impactos positivos são amplamente comprovados em pesquisas produzidas nos últimos dezoito anos, e que é reconhecido internacionalmente pelo sucesso no combate à pobreza e promoção dos direitos sociais da população mais vulnerável. O Auxílio Brasil desorganiza as bases do programa anterior, não especifica uma série de questões, como os critérios para concessão do benefício, e não há quaisquer estudos que sugiram superioridade do Auxílio Brasil em relação ao Bolsa Família ou necessidade de implementação do mesmo.
A partir da análise do texto da MP 1.061, Sordi (2021) assinala que voltamos ao ponto da moralização da pobreza que estimula a narrativa de autorresponsabilização daqueles que estão em situação de pobreza. “Esses pressupostos aparecem formalizados no Artigo 1 da MP por meio dos objetivos para as ações do Auxílio Brasil, que serão voltadas para, dentre outros, o incentivo ao esforço individual e à inclusão produtiva rural e urbana, com vistas à emancipação cidadã” (SORDI, 2021, online). Segundo a autora, além de contribuir para uma visão estereotipada dos beneficiários dos programas sociais, essa moralização da pobreza é alienada da realidade social brasileira, onde o contexto é de grave crise política, econômica, sanitária, e não há um plano governamental para a geração de empregos formais.
Salienta-se que aumento no valor do benefício é absolutamente necessário, principalmente na conjuntura atual, porém, há que se garantir um programa de renda básica decente, voltado para a redução desigualdade social no Brasil e que mantenha os avanços alcançados com o Bolsa Família. Seria o caso de aprimorar o que foi construído até aqui, e não de destruir as bases de um programa consistente, que dialoga com a segurança alimentar, com a saúde e com outras políticas sociais. Nesse sentido, voltamos à discussão sobre a necessidade de transformar o programa de transferência de renda, seja qual for o seu nome, em renda básica a que toda família em situação de pobreza deveria ter direito pois, à medida que o governo não faz disso um direito, ganha força o entendimento de que se trata de benesse, de algo que um governo concede porque assim deseja e retira quando bem entender.
Referências Bibliográficas:
CAMPELLO, T.; NERI, M.C. (Org.). Programa Bolsa Família: uma década de inclusão e cidadania. Brasília: Ipea, 2014.
DINIZ, I. De crítico a defensor do Bolsa Família: veja frases de Bolsonaro. A Gazeta (online). 2020.
FORTUNA, D. Bolsonaro e o programa Bolsa Família: de crítico feroz a defensor. Correio Braziliense (online). 2019.
MARQUES, R. M.; MENDES, Á.; Servindo a dois senhores: as políticas sociais no governo Lula. Rev. Katál. Florianópolis. v. 10, n. 1, p. 15-23. 2007.
SORDI, D. de. O Programa Auxílio Brasil e o encerramento do Bolsa Família. Le Monde Diplomatique Brasil (online). 2021.
SOUZA, P. H. G. F. de; OSORIO, R. G.; PAIVA, L. H.; SOARES, S. Os Efeitos do Programa Bolsa Família Sobre a Pobreza e a Desigualdade: um balanço dos primeiros quinze anos. Rio de Janeiro: Ipea, 2019.
THOMÉ, D. O Programa Bolsa Família e a Social-Democracia: uma análise institucional. Revista Brasileira de Monitoramento e Avaliação. v.4, p. 88-103. 2012.
Raíssa Maria Alves Soares Costa
Graduada em Psicologia (Faculdade Pitágoras/Campus Poços de Caldas, 2017).
Especialista em Psicologia Social (Conselho Federal da Psicologia, 2021).
Possui experiência como psicóloga na Proteção Social Básica da Política de Assistência Social e, atualmente, atua como psicóloga na Proteção Social Especial de Média Complexidade da Política de Assistência Social.
Associada pelo Regional São Paulo da ABRAPSO.
Recebido em 28/10/2021.
Aprovado em 16/11/2021
Comissão editorial das publicações eletrônicas Vozes da ABRAPSO
Publicado em 16/11/2021.