Por uma Psicologia Social que flua da antecipação dos problemas à passagem para uma nova sociedade
Este texto traz apreciações introdutórias sobre os cenários sociocultural, político e econômico contemporâneos e acerca dos fazeres e saberes da Psicologia Social, as quais, espera-se, contribuam para ensejar a reflexividade, a dialogia e as práticas organizativas das pessoas que atuam na área orientadas para o enfrentamento e superação das desigualdades, violências e arbitrariedades estruturalmente engendradas e mantidas pelo capital.
A expressão contemporânea do capitalismo mundializado é caracterizada pela sua permanente crise sistêmica, a qual é resultante de aspectos como a excessiva concentração de riquezas, a financeirização da economia, a desindustrialização e o desenvolvimento predatório que fragiliza os ecossistemas naturais do nosso planeta e assevera a hegemonia de uma urbanidade negacionista das múltiplas formas de vida existentes, apoiadas no esvaziamento radical do Estado como mediador da redução das desigualdades socioeconômicas. Neste contexto, o que se verifica é que o capital, por intermédio dos seus gestores, tem manifestado intolerância e empreendido violentas ações contrárias às tentativas de limitações ou constrangimentos à realização dos seus lucros e da exploração das demais classes. Nesta perspectiva, observa-se em diversos países o consentimento e o apoio dos operadores do capital à entrega da gestão imediata da máquina estatal a grupos políticos representados por indivíduos autoritários e antidemocráticos, comprometidos com a manutenção e expansão dos interesses capitalistas, tais como Trump (EUA), Bolsonaro (Brasil), Erdogan (Turquia), Orbán (Hungria) e Bukele (El Salvador). A contrapartida é que se mantenha aos capitalistas a ampla liberdade, conforme assinalou Karl Marx (1851/2011, p. 123), para […] sob a proteção de um governo forte e irrestrito, dedicar-se aos seus negócios privados, ainda que para garantir este seu devotamento exclusivo aos negócios seja inescusável destruir ou inutilizar as instituições, as liberdades e os direitos civis e políticos do próprio liberalismo.
No Brasil nota-se de um lado: o avanço das políticas neoliberais do governo atual, com o ataque aos direitos trabalhistas, reformas da previdência e administrativa, desarticulação das ações de assistência social, ataque aos sistemas públicos de saúde e educação, às comunidades rurais e ribeirinhas, aos povos quilombolas, originários e da floresta; anuência e descasos frente às devastações das matas e aos desastres socioambientais, entre outros. Em suma, percebe-se uma desconcertante ofensiva contra o conjunto de explorados, empobrecidos e oprimidos. E de outro lado: registra-se o avanço de um governo federal estruturado nas lógicas miliciana e fundamentalista religiosa, ambas capilarizadas nos territórios vulneráveis e na rede dos poderes estatais instituídos (executivo, legislativo e judiciário) e, da mesma maneira, presentes nas outras manifestações de poderio, como aquele representado pelas empresas da mídia tradicional e pelos segmentos da sociedade que garantem a submissão econômica e a coerção das populações. Tais lógicas se objetivam na adesão de parte significativa do corpo social ao autoritarismo, ao obscurantismo e às pautas moralistas dedicadas à manutenção do ordenamento capitalista.
Em nosso país a elevação ao poder de Bolsonaro, um admirador manifesto de ditadores, nazistas e escorralho análogo, teve impactos e desdobramentos dramáticos para a população empobrecida, vilipendiada e explorada que, conforme mencionado anteriormente, viu serem reduzidos substancialmente os investimentos em áreas como a saúde, assistência social e educação e, simultaneamente, viveu a limitação dos direitos e a precarização das condições básicas de trabalho. Neste ano de 2020 a emergência de uma cepa viral tal qual a SARS-COV 2, assim como o evidente sucateamento do sistema público de saúde e das produções científicas nacionais foram objeto dos mais diversos posicionamentos de estudiosos do campo das ciências sociais, humanas e da saúde, prevendo que o modo de vida das grandes aglomerações correlacionado à insistência em dotar o capital do instrumental necessário para a manutenção da sua expansão em tempos de crise, ampliaria a degradação dos cuidados básicos de saúde entre a população em geral e, contraditoriamente, preservaria o crescimento econômico espetacular. O que se verifica nesse momento é um colapso estrutural do sistema de serviços básicos e uma capacidade mínima de enfrentar a crise instalada.
A conjuntura requer a ruptura com o projeto de sociedade presente, o qual, na realidade de base colonial-escravocrata do Brasil e na sua condição subordinada e dependente, moeu e continua a moer a sua gente, para alimentar o capital nacional e transnacional; que extraem recursos governamentais das políticas sociais, saqueiam os fundos públicos e sugam diretamente da classe trabalhadora a seiva que os alimenta, tendo como resultado a produção de grandes quantidades de famélicos. O que se verifica é uma sociedade adoecida já em sua concepção, que gera para si os remédios para sanar as suas mazelas crônicas, mas produz doenças e mortes para as maiorias populares. Há, portanto, um mal social que emana de um organismo mórbido e em estágio avançado de decomposição, evidenciando a premência de criação de outro sociometabolismo e, nisso, de nós mesmos.
Tendo em consideração o exposto, defendemos que as saídas especificamente para a pandemia do coronavírus se encontram, no curto prazo, na adoção de medidas de isolamento social, realização de testes em massa, aumento no número de leitos em hospitais e UTIs, compra de equipamentos, contratação de profissionais, melhorias nas condições de trabalho dos profissionais da saúde, segurança pública e assistência social, fomento à produção e distribuição de insumos necessários à prevenção e combate da COVID 19, bem como ações que garantam emprego e renda da população. Para isso, é necessário romper, também de imediato, com o mito da responsabilidade fiscal, o dogmatismo fiscalista, responsável pelo tolhimento dos investimentos estatais em melhores condições de vida. Como exemplo principal de medidas nessa direção, temos a supressão da Emenda Constitucional do Teto dos Gastos Públicos de /2016.
Em síntese as vidas (de muitos) ao invés do lucro (de poucos). A querela entre a economia e a vida da população, além de falsa, só demonstra a perversão do sistema, seu caráter pútrido, ao se fundamentar na desumanização daqueles e daquelas que o produzem e o sustentam.
Todas essas medidas apontam para a necessidade do fomento estatal às políticas sociais. Na saúde, com a defesa e o fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS); na assistência social, do Sistema Único de Assistência Social (SUAS); na educação, de uma educação pública, gratuita, de qualidade e socialmente referenciada, indo desde a base às universidades, com valorização das ações de ensino, extensão e pesquisa-ciência. Em todos os casos, com melhores condições de trabalho e valorização dos trabalhadores, revertendo um panorama histórico de subfinanciamento e que se intensifica na presente ofensiva ainda mais insaciável do capital.
Assim, a concretude outra vez solicita o comprometimento da Psicologia Social com a transmutação social e nas lutas contra a barbárie imanente, assentado na crítica radical à sociedade capitalista e suas formas de expressão. Nesse sentido, enumeramos algumas contribuições, que devem ser entendidas como dimensões fundamentais e norteadoras da práxis psicossocial:
1. Não corroborar (ainda mais) com processos de psicologização e patologização da vida – muito menos da política. Decisões políticas, a despeito de influenciadas pela condição de quem as toma, devem ser entendidas a partir do que representam em sua concretude histórica; quais são seus intuitos e o que expressam em termos de projeto de país e sociedade em um determinado período e contexto histórico, ao mesmo tempo que circunscritas à própria dinâmica da totalidade social. Nisso, não contribuiremos com a perpetuação de uma lógica societária que tem na psicologização e estigmatização da loucura um mecanismo de mistificação e ocultamento de sua própria dinâmica e suas múltiplas determinações econômicas e sociopolíticas. Ademais, que se utiliza de tais justificativas para seu modus operandi que, engendrado nos/por nossos profundos antagonismos sociais, segrega e violenta determinados indivíduos e grupos sociais, justamente, por expressarem em suas condições de existência antagonismos às determinações e padrões impostos e naturalizados, sinalizando outras inúmeras formas de ser e viver.
2. Atender os sintomas imediatos, as necessidades inerentes a um quadro de intensificação do sofrimento como expressão da própria agudização das insuficiências e debilidades societárias. Acolher angústias; ajudar pessoas, dentro do possível e seguindo orientações disponíveis, a lidarem com as dificuldades que emergem – ou que se recrudescem – no panorama vivido, tendo a conscientização acerca do momento e de si próprios como horizonte da práxis psicossocial. Nesse processo, considerar as singularidades dos sujeitos, que expressam a própria totalidade social (e a conformam), mediadas pelas particularidades sociais. Entender que o período requer mudanças substanciais no cotidiano vivenciado, como, por exemplo, o isolamento social, que traz desafios para toda a coletividade e impõe particulares dificuldades à manutenção da sobrevivência pelas pessoas que precisam lidar com a precariedade rotineira das suas condições de existência e agora devem assumir o risco de manter suas atividades ocupacionais e de geração de renda submetendo-se ao risco da contaminação e do adoecimento. Não obstante, que as exigências circunstanciais, em grande parte, são hipérboles de nossa dinâmica societária, e que, por conseguinte, estão enraizadas na tessitura social e na dinâmica de vida pautada na/pela individualização e isolamento uns dos outros, senão física, ao menos subjetivamente; de alienação uns dos outros e de si; que enseja nos enclausurar concreta ou simbolicamente em nós mesmos. Logo, deve-se questionar se o problema está apenas na intensificação da dose; não estando, é requerido que tal cuidado se oriente para que, no acolhimento dos sintomas, seja possível visualizar suas causas.
3. Fomento à solidariedade social. Solidariedade como oposição a uma lógica de vida que nos aparta e individualiza; como resgate de nossa humanidade desumanizada. De maneira bastante elucidativa, a pandemia do coronavírus vem para nos mostrar que nos fazemos uns com os outros, nas relações sociais; que nossas ações, independente de serem conscientes, impactam na vida de tantos outros. Sem romantizações e idealizações, solidariedade no sentido de se implicar com o outro, que também sou eu, que está contido em mim. De se voltar para as pessoas vulneráveis, com necessidades mais prementes, pois em realidades mais emergenciais e/ou ultrajantes. Temos uma grande oportunidade, infelizmente no aguçamento trágico de nossa sociedade, de, por meio da solidariedade, engendrarmos outras maneiras de nos relacionarmos uns com os outros, com as coisas e, nisso, com nós próprios enquanto humanidade. Ao mesmo tempo que o coronavírus é democrático em seu contágio, demonstrando que todos somos, afinal, iguais em humanidade, suas consequências evidenciam as venais e inaceitáveis diferenças na concretização dessa humanidade; sendo o que nos diferencia socialmente trata-se de construções sociais e que, portanto, não só podem como devem ser transformadas. Nessa perspectiva, em consonância com Martín-Baró, a Psicologia Social deve voltar-se para o trabalho de conscientização visando a desobediência relativa ao que golpear as necessidades populares e a busca por transmutação social situada, arguta e provocada pela coletividade.
Várias ações e formas são possíveis: mediados por tecnologias ou face a face, individuais ou coletivas, de acordo com as particularidades e singularidades da(s) realidade(s). Convocamos, assim, todos(as) para pensarmos juntos(as). Entendemos que são parcas as contribuições da Psicologia Social, frente ao desafio posto. Contudo, de maneira alguma, são insignificantes. Por fim, nos remetemos a Martín-Baró, em O psicólogo no processo revolucionário, a quem ser um(a) bom(a) psicólogo(a) social significa antecipar os problemas que surgirão com a finalidade de facilitar e humanizar a passagem à nova sociedade. No curto prazo, terá que atender os traumas do conflito e da desintegração social. A médio e longo prazos deverá colaborar na edificação social de um homem novo, baseado em necessidades menos individualistas e em objetivos que partem da justa solidariedade(1980/2017, p. 26).
Texto – Diretoria Nacional da Associação Brasileira de Psicologia Social / ABRAPSO 2020-2021
Deivis Perez, Maria Cristina Dancham Simões, Mariana de Almeida Pinto, Pedro Henrique Antunes da Costa, Régis de Toledo Souza, Vanessa Louise Batista.