Esclarecimento:
A ABRAPSO se associa aos movimentos sociais e associações de cunho profissional e científico nacionais que denunciam o conservadorismo da política brasileira no campo dos direitos humanos e dos direitos sexuais, como bem demonstra o último episódio de suspensão do material alusivo ao dia internacional das prostitutas pelo Ministro da Saúde, minando uma estratégia reconhecida de prevenção.
Esse episódio se segue a outros, como a suspensão do Kit pedagógico de combate á homofobia pelo MEC em 2011 e a suspensão da campanha de prevenção dirigida a jovens gays no último carnaval. Essas decisões indicam um retrocesso do atual governo, o qual parece ceder às pressões religiosas, sexistas e homofóbicas que emanam do Congresso e de setores do governo.
A campanha pela derrubada da resolução 01/1999 do CFP e a proposta do estatuto do nasciturno são sinais alarmantes da ameaça que sofre a jovem democracia brasileira e a laicidade. A invasão do dogma religioso, seja ele de que credo for, é um ataque aos direitos humanos, aos avanços do saber científico sobre o preconceito e às conquistas em relação à igualdade de direitos entre homens e mulheres sem distinção de cor, orientação sexual ou identidade de gênero.
A seguir reproduzimos a Nota pública do Grupo de Trabalho em Gênero e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO):
SEM MEDO DE SER FELIZ:
Pela afirmação dos direitos humanos como princípio para a prevenção em saúde
Indignadas/os com os recentes episódios – que resultaram na suspensão e posterior relançamento de material de comunicação alusivo ao Dia Internacional das Prostitutas -, as/os integrantes do Grupo de Trabalho em Gênero e Saúde da ABRASCO (Associação Brasileira de Saúde Coletiva) vêm a público manifestar seu total apoio à equipe do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, responsável pela elaboração deste material, que foi injustamente censurada por produzir nada mais que uma genuína mensagem de prevenção.
No texto que informa o relançamento do material (agora em formato de Campanha), o secretário de Vigilância em Saúde, Jarbas Barbosa argumenta que É fundamental que grupos vulneráveis tenham conhecimento dos locais de distribuição da camisinha. A camisinha feminina permite que a mulher decida sobre o uso do preservativo, de modo que essa escolha não seja apenas do homem. É uma estratégia que faz parte da política brasileira de ampliar as opções de proteção às doenças sexualmente transmissíveis.
Porém, é importante lembrar que o alardeado internacionalmente (e atualmente questionado) sucesso da Resposta Brasileira à Epidemia não está baseado exclusivamente na promoção do acesso ao uso de preservativos e da oferta de medicamentos para quem vive com HIV. Considerando o problema em sua complexidade, ao longo das últimas décadas, a sociedade e o governo brasileiro tem investido esforços em tratar o problema pela raiz e não pelo sintoma.
Nesta perspectiva, mensagens do tipo Cidadã, use camisinha! assumem sentido bem mais complexo. Para populações mais vulneráveis, o primeiro passo é a afirmação da cidadania, afinal, séculos de tradição e práticas sexistas, machistas, homofóbicas e racistas produziram em nosso país, estigmas e consequências indeléveis à autoestima e autoaceitação de LGBT, negros/as, pobres, mulheres e, particularmente, as prostitutas.
Em outras palavras, qualquer medida de prevenção em saúde, ao tratar de populações em situação de maior vulnerabilidade, deve considerar, antes de qualquer coisa, as condições e possibilidades de existência para essas pessoas, ou seja, as diversas formas a partir das quais essas pessoas foram impedidas de existir em sua plenitude, que as impediram de realizar seu projeto de felicidade.
José Ricardo Ayres (2007), Doutor em Medicina e Professor Titular em Medicina Preventiva da USP, define projeto de felicidade como totalidade compreensiva na qual adquirem sentido concreto as demandas postas aos profissionais e serviços de saúde pelos destinatáriosde suas ações (p. 54).
Assim, é importante que fique claro que o material censurado, como informa o próprio site do Ministério da Saúde, foi produzido a partir de uma Oficina de Comunicação em Saúde para Profissionais do Sexo, realizada entre os dias 11 e 14 de março de 2013, em João Pessoa (PB). Participaram da Oficina representantes de organizações não-governamentais, associações e movimentos sociais que atuam junto a profissionais do sexo de todas as regiões do país, apoiando o enfrentamento às DST, aids e hepatites virais.
Ou seja, as mensagens foram produzidas pelas próprias destinatárias das ações de promoção à saúde, inclusive a supostamente polêmica afirmação Eu sou feliz, sendo prostituta!.
Como bem referiu Fernanda Benvenutty, enfermeira e militante transexual brasileira, em evento sobre gestão de riscos, promovido recentemente pelo Departamento de Aids do Ministério da Saúde (entre 3 e 4 de junho): ao dizer que são felizes, sendo prostitutas, o que essas mulheres estão afirmando é que, APESAR de uma cultura machista, APESAR de uma sociedade que não as respeita, que as discrimina e que insiste em invisibilizá-las, apesar de um governo que não respeita seu verbo e suas práticas, APESAR DE TUDO ela é feliz! E esse direito humano à felicidade não lhes pode ser negado.
E como podemos, então, lidar com esse projeto de felicidade? Ayres (2004) defende que não devemos lidar com os projetos de felicidade de indivíduos e populações como se fossem alguma espécie de planejamento. Antes que uma planilha, onde são fixados metas, recursos e estratégias, a idéia que mais se aproxima à do projeto de felicidade é o de uma obra de arte – uma pintura, um poema, uma escultura – pela qual se expresse a vida e o aspecto de saúde em questão (…) Além disso, na expressão do projeto de felicidade, como na produção do poema, da pintura, da escultura, misturam-se razão e afetos, luz e sombra, o explícito e o suposto, o retratado e o não-retratado, o retratável e o não-retratável. O projeto de felicidade é, no modo como se expressa, uma totalidade compreensiva (p. 57).
Portanto, o material de comunicação produzido em homenagem às prostitutas, em sua arte, inscreve profundo respeito por essas pessoas, as afirmam como cidadãs e certamente promovem autoaceitação e, consequentemente, as capacitam a promover prevenção, defendendo-se da tradição que as subjulga e que tenta calá-las.
Vale lembrar que no Brasil, prostituição não é crime, é ocupação incluída pelo Ministério do Trabalho e Emprego, na Classificação Brasileira de Ocupações, inclusive com atribuição de participar em ações educativas no campo da sexualidade, conforme descrito a seguir.
5198-05 – Profissional do sexo (Garota de programa, Garoto de programa, Meretriz, Messalina, Michê, Mulher da vida, Prostituta, Trabalhador do sexo)
Descrição Sumária: Buscam programas sexuais; atendem e acompanham clientes; participam em ações educativas no campo da sexualidade. As atividades são exercidas seguindo normas e procedimentos que minimizam a vulnerabilidades da profissão
Portanto, pela cidadania, pelo respeito, pela efetividade das medidas de prevenção em saúde projetos de felicidade, inclusive de prostitutas, não devem ser reprimidos e sim considerados como ponto de partida de qualquer iniciativa em saúde pública… sem medo de ser feliz!
Fontes:
§ AYRES, José Ricardo C. M.. Uma concepção hermenêutica de saúde. Physis [online]. 2007, vol.17, n.1, pp.43-62. ISSN 0103-7331. http://www.scielo.br/pdf/physis/v17n1/v17n1a04.pdf
§ Site do Portal sobre aids, doenças sexualmente transmissíveis e hepatites virais do Ministério da Saúde -www.aids.gov.br/noticia/2013/campanha-orienta-prostitutas-sobre-prevencao-de-dst-e-aids
§ Classificação Brasileira de Ocupações. www.mtecbo.gov.br