Não é de agora que sabemos dos grandes problemas que as áreas da Saúde, Assistência Social e Educação enfrentam. Considerando especialmente a Saúde, objeto deste pequeno texto, essas dificuldades se relacionam com o histórico subfinanciamento do Sistema Único de Saúde, mesmo nos tempos em que vivíamos sob as políticas de um governo que apostava em princípios sócio-democratas. Ainda que, pelos investimentos em Políticas Públicas, tenhamos alcançado alguns resultados, como a diminuição dos índices de extrema pobreza (e isso é importante), não se produziu rupturas que se sustentassem ou fossem menos frágeis quando o interesse das elites econômicas resolveu mudar o jogo e apostar no avanço de políticas neoliberais que atacavam os direitos trabalhistas e previdenciários. Mais ainda, desde a aprovação em dezembro de 2016 da PEC da morte, aquela que congela os gastos em Saúde e Educação pelos próximos 20 anos, o Governo Federal deixou de investir aproximadamente 20 bilhões na Saúde. Em tempos de enfrentamento de uma Pandemia, a diminuição do orçamento é sentida com a falta de equipamentos hospitalares, EPIs, leitos e profissionais qualificados para o seu enfrentamento. Somando ainda a falta de investimento em pesquisa efetivada pelo atual governo negacionista do saber científico, temos tudo para a consolidação de um cenário desastroso.
O Coronavírus nos colocou diante de novos e nos fez lembrar dos antigos problemas enfrentados pela Saúde Pública e Coletiva: a profunda desigualdade social que vivemos, a precarização do trabalho, as dificuldades técnicas, orçamentárias e políticas para a constituição de uma rede de apoio psicossocial, a perda de direitos sociais e previdenciários e o ataque às Políticas Públicas. Soma-se a isso um Presidente da República que não só demonstra incompetência para compreender o fenômeno como reafirma aquilo que o destacou no cenário social: o ódio, a mentira e a negação da razão como princípios políticos.
Mas, há ainda diversos problemas que podem permanecer invisibilizados pela reflexão exclusivamente macropolítica. É sobre esses problemas que gostaríamos aqui brevemente de tratar. Obviamente que as duas dimensões da política de Saúde se cruzam, são inseparáveis, aqui as dividiremos para que possamos relevar problemas locais. Chamamos de macropolítica os direcionamentos, financiamentos e políticas sinalizados e efetivados pelo Governo Federal e que estruturam a organização do Sistema de Saúde nos municípios e territórios, como, por exemplo, a Estratégia de Saúde da Família. Ao mesmo tempo, estamos nomeando como parte da micropolítica não somente as relações sociais, fluxos, ritualísticas constituídas entre os atores que circulam e operam nas unidades, ambulatórios e serviços emergenciais nas esferas municipais, incluímos também as formas de gestão que impactam diretamente o processo de trabalho nos serviços de Saúde. Aqui, destacaremos duas destas: a lógica privatista e o que chamaremos de patrimonialismo. A primeira desinveste na superação do modelo médico-centrado e hospitalocêntrico, à medida que sucateia a Atenção Básica, almejando transformar seus serviços em meros ambulatórios unidisciplinares desmontando inclusive, recentemente, a importante proposta de equipe multidisciplinar, o NASF; a segunda releva o uso dos cargos por motivos políticos e, mais que isso, o emprego de gestores que simplesmente desconhecem o trabalho em Saúde e as políticas que o norteia. E o problema não é somente a falta de saber sobre a Saúde: é o uso do Público como se ele fosse um patrimônio privado, lugar do exercício de privilégio.
O primeiro aspecto que gostaríamos de considerar é a lógica privatista que nos últimos anos transformou as perspectivas de consolidar a Saúde como um amplo processo social relacionado com as diversas dimensões que compõem a vida como o Trabalho, a Habitação, o Direito, o Transporte, o Lazer etc., em um campo aberto para a extensão e produção de negócios fundamentados na noção privatista que retoma a ideia de Saúde como a ausência de sintomas, dissolve a possibilidade de construção de uma rede de cuidado e principalmente desconsidera a Saúde como uma dimensão para a emancipação das populações. Nesse sentido, a Atenção Básica caracteriza-se como lugar privilegiado visto ser atuante no território, ou seja, no espaço social onde a vida acontece. Não à toa, portanto, tão desvalorizada em tempos recentes. Investir na Atenção Básica implica necessariamente investir na dimensão emancipatória da Saúde a partir do fortalecimento das organizações de bases comunitárias.
Como a lógica privatista é vivida no cotidiano? O primeiro e mais óbvio indício de sua presença é a privatização dos serviços públicos que resulta em uma fragmentação e também na hierarquização dos serviços prestados. Como construir uma rede efetiva e intersetorial em serviços que são geridos por diferentes Organizações Sociais? Mas, o problema não se restringe a presença das OSs: se desde a lei que regulamenta o Sistema de Saúde admitimos como parte do SUS a presença de serviços privados em caráter complementar, constituiu-se no país a ideia de que os serviços particulares apresentam qualidades que os públicos não possuem. É comum entre servidores municipais a preocupação em possuir um plano privado de saúde. Em resumo: a lógica privatista se faz presente na tensão entre o público e o privado.
Segundo efeito: a lógica privatista constitui uma racionalidade que é individualizante, fragmentada e hierarquizada. Individualizante porque o processo saúde-doença se restringe somente a responsabilidade dos próprios indivíduos, sendo seu contexto sócio-histórico um mero cenário de imagens vazias. É o desejo dos indivíduos, seu caráter, sua vontade ou suas características psíquicas, que determinam suas formas de adoecimento e sua aderência aos tratamentos. O processo de individualismo ganha eco na relação saúde-doença e talvez o reflexo mais agudo disso seja, em tempos de pandemia, a admissão que a morte de alguns milhares é natural: as milhares de vidas valem pouco quando comparadas à queda da bolsa. Se por um lado para o capitalismo o desejo é ferramenta de captação do sujeito, para esta racionalidade por outro, há sujeitos que podem desaparecer: os velhos, os doentes crônicos, as pessoas com deficiência. A lógica privatista também é uma maneira de construir uma hierarquização contrária aos princípios do próprio Sistema Único de Saúde. Não que isso estivesse anteriormente ausente, lembremos do ato médico e de todas as suas implicações. Ela impõe não somente uma noção produtivista, mas também a perda de autonomia e a submissão dos profissionais de saúde ao poder médico. Aqui, não se trata de uma disputa de profissões, trata-se de compreender que a lógica que se instaura no Sistema de Saúde é hierarquizada, privatista (que ganha contornos cada vez mais produtivistas) e classista[1].
O histórico patrimonialismo brasileiro é parte desta mesma lógica. Aqui o problema que inicialmente destacamos é a transformação dos serviços e cargos públicos no pagamento de dívidas dos compromissos eleitorais ou privilégios de amizade: o amigo do amigo. Prefeitos, vereadores e gestores convidam seus amigos, partidários e simpatizantes para exercer cargos determinantes na organização dos serviços públicos. Em muitos casos, temos pessoas que não apresentam conhecimento suficiente para coordenar setores da assistência em Saúde. Pessoas que nunca atuaram na atenção básica ou especializada assumem cargos de coordenação das redes e, por consequência, isso se reflete nos cargos sucessivos. Essa lógica do amigo do amigo, muito comum nos diversos setores da sociedade, é outro entrave para o SUS. No momento de pandemia, além da falta de dados consistentes decorrentes das dificuldades de testagem etc., a dificuldade de organizar estratégias também é o resultado e a face do amigo do amigo. A falta de diretrizes de longo prazo e autônomas em relação aos partidos que assumem a administração pública e o despreparo de pessoas em cargos importantes de gestão colabora para o adoecimento e morte de muitos.
Assim, pode a Psicologia Social Crítica contribuir neste processo? A resposta pode se constituir na lembrança de seu papel histórico no país: ao assumir um compromisso ético-político e basear-se em noções como afetividade e sofrimento ético-político a Psicologia Social pode colaborar na construção de redes solidárias que se opõem a redução do sofrimento a processos individualistas e desumanizadores, apoiando e propondo saídas comunitárias para problemas coletivos. Considerar aqui a privatização dos serviços é justamente uma tentativa de ressaltar a dimensão histórica do sofrimento que os diversos atores sociais têm vivido e que, na disseminação da doença e nos riscos de contágio, se intensificam. Lembremos ainda o papel dos psicólogos e das psicólogas socais destacado por Martin-Baró: é ao lado do povo, que devemos estar. No entanto, é preciso considerar e trabalhar para que a própria psicologia não reproduza em suas práticas as ações de dominação que tem no patrimonialismo e no privatismo duas faces comuns.
Texto enviado por integrantes do Núcleo Baixada Santista – Regional São Paulo da ABRAPSO
Christiane A. Abdala
Trabalhadora no Sistema Único de Saúde (SUS), psicóloga e mestra em Ciênicas da Saúde pela UNIFESP, integrante do Núcleo Baixada Santista e coordenadora da Regional São Paulo da ABRAPSO (Gestão 2020-2021).
Fernando A. Figueira do Nascimento
Trabalhador do Sistema Único de Saúde (SUS), psicólogo e doutorando em Psicologia Social pelo Insituto de Psicologia da USP, integrante do Núcleo Baixada Santista e coordenador da Regional São Paulo da ABRAPSO (Gestão 2020-2021).
[1] Em seu livro sobre Psicologia Social e Saúde, Spink (2013) ressalta os elementos classistas presentes na organização dos serviços de Saúde desde a escolha e acesso às formações profissionais.