VOZES DA ABRAPSO – Uberização, vidas entregues e pandemia

Flávia M. Uchôa de Oliveira

Este breve texto busca registrar reflexões desenvolvidas a partir do curta metragem “Vidas Entregues”, do cineasta e historiador Renato Prata Biar, lançado em dezembro de 2019.  O filme é de acesso público no Youtube[1]. Nossa sugestão é a de que leitor assista ao filme antes de dar andamento a esta leitura. Mas, para aqueles que não se importam com nenhuma revelação de detalhes (os conhecidos spoilers), também é uma possibilidade continuar por aqui e assisti-lo ao final da leitura.

A rica interlocução que o filme proporciona também foi registrada na primeira edição do “Papos de TraMPos”, em 14 de maio passado, tendo a participação do Renato e da autora deste texto na condução da conversa. O “Papos” foi uma iniciativa criada pelo grupo de alunos e pesquisadores do Laboratório de Estudos e Pesquisas interunidades sobre Trabalho, Movimentos Sociais e Políticas Sociais, o TraMPoS, da Universidade de São Paulo. A decisão por trazer como primeiro tema de discussão a uberização do trabalho veio das inquietações sobre o que nós, psicólogos sociais e psicólogos sociais do trabalho, temos para falar ou contribuir com a compreensão destas “novas” modalidades de trabalho.

O uso destas aspas na palavra nova buscam pontuar o entendimento de que a uberização do trabalho não é puramente uma novidade. Antes e principalmente, ela articula o novo e o antigo. O novo está posto na tecnologia empregada pelas “empresas-aplicativos” (Abílio, 2019) para reorganizar as já antigas formas de criar trabalho e de se inserir economicamente. Os bicos, o freelance, as ôias, o trabalho “por conta” e o “se virar” são organizados agora pela tecnologia que media e controla as interações entre “consumidores” e “prestadores de serviços”.

O que queremos dizer é que a uberização do trabalho é a novidade tecnológica que organiza a “viração”, tão característica do mercado de trabalho brasileiro e latino-americano. No Sul global, o emprego não chegou a ser a norma. E, para a maioria da “população que vive do trabalho” (Antunes e Praun, 2015), sempre foi complementado por outras atividades de trabalho, em paralelo e interpostas. É, neste sentido, que a uberização do trabalho organiza a informalização e aprofunda a precarização do trabalho. Organiza a massa de trabalhadores que não encontram emprego e tem de se inserir no mercado informal. Aprofunda a precarização do trabalho no repasse de todo e qualquer custo do trabalho para o trabalhador, sem que ele possa negociar suas condições de trabalho e o valor de seu serviço ou produto.

Tendo em vista esta definição, pensamos em realçar dois elementos que podem nos auxiliar na melhor compreensão destas não-tão-novas formas de trabalho. E, ainda, que podem ser exemplificadas por meio dos depoimentos de Bianca, Fabrício e Vitor, os trabalhadores entrevistados no filme “Vidas Entregues”. Vejamos.

1) A uberização é a representação atual de um processo de décadas de transformações no mundo do trabalho

“Fui procurar emprego, vi o cara trabalhando e me inscrevi […] Muita gente vem pro Centro para procurar emprego. Aí, não consegue. Aí, vê muita gente trabalhando assim e pergunta como é que faz […] É que a taxa de desemprego tá muito alta mesmo. Os outros não tem pra onde ir, tá vindo pra cá, pra entrega de aplicativo”. É assim que Fabrício explica o início de suas atividades como entregador de bike por aplicativos.

Bianca, da mesma forma que Fabrício, indicou que foi a falta de emprego que fez com que ela e seu marido começassem a trabalhar por aplicativo. Ela contou: “A maioria dos meus vizinhos, de desempregados, tá tudo descendo pra fazer aplicativo, pra rodar pelo aplicativo porque, infelizmente, o desemprego, ele tá geral. Tá brabo, tá feia a coisa”.

No mundo-sem-emprego (Uchôa-de-Oliveira, 2020), a uberização é a representação atual mais bem acabada de um processo de muitas décadas de transformações no mundo do trabalho. No típico receituário neoliberal de flexibilização, desregulação, privatizações e terceirizações, a uberização é a receita completa. Flexibiliza e desregula as relações de trabalho; privatiza serviços, como, por exemplo, o de transporte e abastecimento; e terceiriza o trabalho, agora não mais entre CNPJs, mas de CNPJs para CPFs.

A inserção individual no mercado de trabalho é colocada como a única saída. Os trabalhadores, que não podem mais esperar pelo emprego, veem nas empresas-aplicativos a forma de inserção econômica mais rápida e acessível, o que cumpre a urgência da sobrevivência. Para esta inserção individual, servem muito bem as ideias e práticas do “empreendedor de si mesmo”, e os imperativos de “seja seu próprio patrão” e “invista em si mesmo”.

2) A uberização é a contradição exposta entre a inserção individual no mercado de trabalho e o controle do trabalho

Na uberização, as ideias e práticas abertas pela figura do empreendedor entram em chocante contradição com a realidade de superexploração e controle do trabalho pelas plataformas.

Por exemplo, em seu depoimento, Bianca explica: “A taxa é pouca e isso todo mundo já sabe, né? Porque às vezes a gente anda, anda, anda… A Uber é um absurdo, né? R$3,50… Às vezes, a gente pedala, pedala, pedala e aí é isso que a gente recebe. A Rappi também porque, às vezes, ela gera uma dívida que a gente nem sabe o porquê”. Assim como faz Bianca, Vitor indica as dívidas que a Rappi “gera” para o trabalhador quando há algum erro de endereço na entrega, ele tem amigos que “tão trabalhando para pagar a entrega. [A Rappi] vai descontando as entregas”.

Fabrício também fala sobre os valores que recebe: “No começo, a taxa de entrega era boa. Aí, no decorrer do tempo, acho que foi abaixando. Tá cada dia pior, tiraram nossa promoçãozinha que a gente fazia… Pra gente aí, tiraram. Pior coisa que tem é a taxa mesmo porque tá muito baixa”.

A “autonomia” e a “flexibilidade” destas formas de trabalho são inexistentes quando pensamos que estes trabalhadores não conseguem negociar aquilo que recebem. Estes agentes econômicos ditos “livres” e “iguais”, não conseguem ter acesso às regras na distribuição das demandas sobre seu trabalho. Igualmente, não possuem acesso à formulação das avaliações dos consumidores sobre o seu trabalho. Esta “subsunção real” ao trabalho (Abílio, 2019) faz cair por terra qualquer visão destes trabalhadores como “empresários de si mesmo”.

Esta contradição entre o discurso de inserção individual, de autonomia, do “trabalhe quanto e quando quiser” e as condições de controle do trabalho vem fazendo com que esses trabalhadores se mobilizem. Os tempos de pandemia trouxeram maior visibilidade a estes tipos de trabalho ao redor do globo. A garantia das regras de distanciamento social está diretamente relacionada aos serviços de entrega realizados por estes trabalhadores, incluídos nos “serviços essenciais” (Betim, 2020). O novo coronavírus exacerbou a “subsunção” destes trabalhadores à realidade do controle destas plataformas.

Em Abril passado, vimos movimentos acontecerem em toda América Latina, incluindo no Brasil, de norte a sul. Nas paralisações do último Abril, foi reportado que “[…] centenas de entregadores em Teresina, Piauí, no nordeste do país, protestaram exigindo segurança contra os constantes assaltos que sofrem durante o trabalho – pelos quais não recebem qualquer compensação das empresas” (Castanheira, 2020).

Conclusão: e a psicologia social e social do trabalho com isso?

A uberização do trabalho nos traz um problema grande em dimensão e em impactos na organização do trabalho. Em diversas abordagens que se dedicam ao estudo do trabalho, é amplamente reconhecida a vinculação entre a organização do trabalho e os efeitos dessa para a subjetividade do trabalhador e para a relação saúde-doença no trabalho (Antunes e Praun, 2015). É preciso que, nós psicólogos sociais e psicólogos sociais do trabalho, resgatemos as formas de coletivizar o pensamento junto aos trabalhadores. É preciso que estejamos atentos às suas mobilizações, especialmente, neste tempo de distanciamento social. Torna-se crucial que os psicólogos sociais e sociais do trabalho contribuam com a compreensão desta temática, identificando os impactos psicossociais dessas novas modalidades e as possibilidades de resistência e de organização coletiva das massas de trabalhadores uberizados.

 Referências:

Abílio, L. C. (2019). Uberização: Do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado. Psicoperspectivas, 18(3).http://dx.doi.org/10.5027/psicoperspectivas-vol18-issue3-fulltext-1674

Antunes, R., & Praun, L. (2015). A sociedade dos adoecimentos no trabalho. Serviço Social & Sociedade, (123), 407-427.

Betim, F. (2020, 18 de Março). Quem faz a São Paulo que não pode parar por causa do coronavírus. El País. Recuperado de https://brasil.elpais.com/sociedade/2020-03-18/a-sao-paulo-que-nao-pode-parar-por-causa-do-coronavirus.html (Acesso em 09 de Maio de 2020).

Castanheira, T. (2020, 25 de Abril). Entregadores de aplicativos fazem greves por condições seguras no Brasil e no mundo. World Socialist Website. Recuperado de https://www.wsws.org/pt/articles/2020/04/25/braz-a25.html (Acesso em 09 de Maio de 2020).

Uchôa-de-Oliveira, F. M. (2020). Somos todos empreendedores? A demanda empreendedora como dispositivo de governo neoliberal (Tese de Doutorado). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.

Flávia M. Uchôa de Oliveira
Doutora em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da USP
Associada pelo Regional São Paulo da ABRAPSO

Recebido em 15/05/2020.
Aprovado em 17/06/2020
Comissão editorial das publicações eletrônicas Vozes da ABRAPSO
Publicado em 19/06/2020.