ABRAPSO Opinião – A caça às mulheres na pandemia do coronavírus

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De acordo com os dados da ONU Mulheres, a pandemia impacta mais severamente as mulheres por uma série de fatores: 70% de trabalhadores de saúde no mundo são mulheres, expondo-as à maior contaminação; o isolamento aumentou os índices de violência doméstica; as idosas vivem mais sozinhas e possuem menor renda que os idosos; as mulheres são maioria em trabalhos informais e no setor têxtil (um dos mais afetados), além de ocuparem as tarefas domésticas e de cuidado; estima-se que as mulheres desempenham três vezes mais trabalhos não remunerados do que os homens, o que durante a epidemia pode triplicar; além disso, elas são apenas 25% das parlamentares e 10% das chefes de governo no mundo. Concomitantemente, o relatório apresentado pela CEPAL (2020), sobre os efeitos econômicos e sociais da pandemia na região da América Latina, dentre outras projeções, prevê que a desigualdade de gênero será agravada através das consequências das medidas de isolamento, fechamento de escolas e aumento do número de pessoas doentes, tendo em vista a responsabilização e sobrecarga do trabalho feminino não remunerado. Tais dados merecem ser contextualizados, pois não é possível compreender o capitalismo sem o trabalho não assalariado, pois este, além de sustentar a exploração capitalista em sua máxima expressão, é naturalizado a partir de mitos. com o do “amor materno”.

 

E nesse momento, a reflexão de Federici é importante para desnaturalizar tais discursos e, sobretudo, pensar no papel estrutural da mulher a partir de uma divisão sexual do trabalho nos marcos da sociedade capitalista. A discriminação contra as mulheres é um legado do longo período histórico de transição do período feudal para o capitalismo, que necessitou construir novas funções sexuais. Para Federici (2017), a exploração das mulheres teve papel central no período de acumulação primitiva e ainda hoje possui na acumulação capitalista. A descrição da acumulação primitiva da autora prevê três aspectos não debatidos por Marx: uma nova divisão sexual do trabalho; uma nova ordem patriarcal de subordinação das mulheres, cuja principal função é a retirada de controle da mulher sobre seu corpo e fertilidade; a mecanização do corpo trabalhador, sendo a mulher “tornada” uma máquina de procriação de novos trabalhadores. Esses aspectos trazem consigo a ideia de que o trabalho doméstico não é um “vestígio do passado”, ou que sempre acompanhou as mulheres. Possui antes uma função na organização capitalista do trabalho, fundamentalmente por ser o trabalho (não remunerado) que produz e reproduz outras forças de trabalho. Há ainda de se considerar as funcionalidades das relações matrimoniais, sob a ideologia do amor romântico, no controle e exploração do trabalho feminino, que tem servido como base para a manutenção da subordinação das mulheres aos homens. Assim, “o compromisso com o barateamento do custo da produção do trabalho, ao longo do desenvolvimento capitalista, exige o uso da máxima violência e de guerra contra as mulheres, que são o sujeito primário da produção” (Federici, 2017, p. 14). Para além da ação direta sobre as mulheres – e atrelada a ela, surge um novo conceito de pessoa baseado na responsabilização do indivíduo e na ética do trabalho, o que nos interessa especialmente por ter subsidiado a formação das subjetividades desde então e, consequentemente, ter sido as bases da psicologia burguesa.

 

A partir desse novo contrato sexual, a pobreza foi feminilizada e a mulher tornada um bem comum. Segundo a OXFAM Brasil (2020), as mulheres e meninas, principalmente em situação de pobreza e condição marginalizada, dedicam gratuitamente 12,5 bilhões de horas todos os dias ao trabalho de cuidado e outras incontáveis horas recebendo uma baixíssima remuneração por essa atividade – quando recebem. Esse trabalho não pago, responsável pelo âmbito da reprodução social, agrega pelo menos US$ 10,8 trilhões à economia; do mesmo modo, ao ser tomado como natural, desresponsabiliza o Estado de fornecer serviços básicos, perpetuando a condição de aprisionamento da mulher. Sem esse trabalho, a classe capitalista teria de investir em todas as infraestruturas necessárias para a reprodução social, o que afetaria drasticamente a sua taxa de acumulação.

 

Assim, a tese da autora é a de que a divisão sexual do trabalho e o trabalho não remunerado das mulheres, desde o período de acumulação primitiva, desempenham uma função central no processo de acumulação capitalista. Os aspectos da transição capitalista podem parecer distantes – “pré condições históricas”, conforme afirmou Marx -, porém são cada vez mais atuais. Outras características do período de acumulação primitiva apontadas pela autora e que nos alertam para o presente são: uma campanha contra a cultura popular; a imposição de uso produtivo do tempo livre; uma reforma moral de base religiosa – católica e protestante; uma relação privatizada entre indivíduo e Deus; a privatização da reprodução dos trabalhadores, que passa da comunidade para a família (que passa a ser instituição chave de transmissão da propriedade e reprodução da força de trabalho); e o surgimento da assistência pública como forma de evitar a fuga do trabalho. Sendo assim, não é possível compreender o capitalismo – em seu berço e atualmente! – sem nos debruçarmos no trabalho não assalariado das mulheres, pois este, além de serem base sustentadora da exploração capitalista em sua máxima expressão, é naturalizado a partir de um discurso de inferioridade natural.

 

Ainda segundo Federici (2017), são nos momentos de crise econômica agudizada – compreendendo aqui a crise como estrutural ao capitalismo – que há uma retomada mais brusca das característica da acumulação primitiva antes mencionados,  que resgatam também os processos de colonização e escravidão (fundamentalmente dos países periféricos, como o Brasil). E a que os dados primeiramente mencionados – sobre mulheres e COVID-19 – nos remetem se não a uma agudização do caráter violento que sempre acompanhou as mulheres? Essa pergunta parece retórica. As fogueiras da caça às bruxas ainda se mantêm acessas, sob novas roupagens, estão amparadas pelas políticas neoliberais e no insistente controle dos corpos femininos. A chama do capitalismo é a morte, e o que nos instiga hoje são os rumos desse momento histórico cujos destinos estão em disputa.

 

Referências

CEPAL. (2020). América Latina y el Caribe ante la pandemia del COVID-19: efectos económicos y sociales. Recuperado de: https://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/45337/S2000264_es.pdf?sequence=4&isAllowed=y

Federici, S. (2017). Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Editora Elefante.

OXFAM Brasil. (2020). Tempo de cuidar. O trabalho de cuidado não remunerado e mal pago e a crise global da desigualdade. Recuperado de: https://oxfam.org.br/justica-social-e-economica/forum-economico-de-davos/tempo-de-cuidar/

United Nations. (2020). Policy Brief: The Impact of COVID-19 on Women. Recuperado de: https://www.un.org/sites/un2.un.org/files/policy_brief_on_covid_impact_on_women_9_apr_2020_updated.pdf

 

Texto enviado por integrantes do Núcleo Juiz de Fora – Regional Minas Gerais da ABRAPSO.

 

Kíssila Teixeira Mendes

Doutoranda em Psicologia na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) na linha Processos Psicossociais em Saúde. Mestra pela mesma instituição e linha (2018). Pesquisadora do Centro de Referência em Pesquisa, Intervenção e Avaliação em Álcool e Outras Drogas (CREPEIA). Membro do corpo editorial da revista Psicologia em Pesquisa (UFJF).

 

Camila Borges Machado
Doutoranda em Psicologia na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) na linha Processos Psicossociais em Saúde. Mestra pela mesma linha e instituição (2019). Psicóloga pela Faculdade Machado Sobrinho (2015). Coordenadora do núcleo ABRAPSO (Associação Brasileira de Psicologia Social) de Juiz de Fora/MG.