Brasília, 03 de março de 2016
Excelentíssimos senhores senadores e senadoras,
Nós, docentes e pesquisadores/as vinculados/as a Núcleos de Estudos e Pesquisas de várias universidades brasileiras, entidades, associações e fóruns acadêmicos viemos, por meio desta, manifestar nossa radical discordância em relação ao posicionamento público de alguns parlamentares brasileiros, em suas manifestações diversas de desrespeito em relação às estratégias de enfrentamento à violência e discriminação, baseadas em gênero, nas escolas e em outras instituições de nosso país.
Estarrecidos com a decisão recente da Câmara dos Deputados de excluir a expressão perspectiva de gênero do documento que orienta as competências do recém criado Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, consideramos pertinente nos dirigir a vossas senhoras. Nossa inquietação reside, sobretudo, no fato de que este Ministério foi criado justamente para propor políticas públicas que visem coibir as violações de direitos humanos, entre elas a iniquidade de gênero, ou seja, a desigualdade de direitos entre homens e mulheres. Retirar a perspectiva de gênero é ignorar os fundamentos teóricos do debate que embasa a existência deste Ministério.
A recorrente e sistemática perseguição ao conceito de gênero, em diferentes instâncias, por alguns nos nossos legisladores revela, por um lado, absoluta ignorância em relação à produção científica nacional e internacional e, por outro lado, total irresponsabilidade e descaso em relação a recorrentes denúncias de violência no contexto da formação escolar, que resultaram na necessidade de medidas que visam coibir violência material ou simbólica, neste contexto; processo iniciado no Brasil, desde a década de 1970.
Como educadores/as, resta-nos evidenciar que:
1) Gênero é teoria, não ideologia.
O campo de estudos de gênero tem mais de meio século de produção e alberga um conjunto de contribuições disciplinares e interdisciplinares, desenvolvidas especialmente no campo das Ciências Humanas, Sociais e da Saúde, reconhecidas internacionalmente pela comunidade acadêmica como produção científica.
2) Gênero não é plataforma de partido ou de movimentos sociais específicos, é ciência.
Os conceitos que embasam as teorias de gênero não podem ser atribuídos a um partido ou projeto político específico. Este tipo de argumento ignora toda a longa história e vasta bibliografia deste campo de produção científica. Ao mesmo tempo, a promoção da equidade de gênero não compreende uma agenda apenas do feminismo (de mulheres e homens) ou dos grupos LGBTI e sim um compromisso do país com conceitos consagrados por esta vasta produção científica, em diálogo com documentos e sistemas educacionais e com acordos internacionais, dos quais o Brasil é signatário. Um desses acordos é o Plano de Ação da Conferência de Populações e Desenvolvimento da ONU, 1994, do qual o Brasil é signatário. Desrespeitar acordos internacionais pode gerar graves constrangimentos diplomáticos, repercutindo diretamente na imagem positiva do nosso país, em fóruns mundiais.
3) Teorias de gênero têm fundamentado dispositivos que visam a promoção de direitos humanos
O conceito de gênero foi central para a institucionalização de tratados internacionais importantes e também para fundamentar legislação nacional relevante, como, por exemplo, a lei Nº 11.340/2006 (conhecida como lei Maria da Penha), que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher e a Lei Nº 13.185/2015, que institui o Programa de Combate à Intimidação Sistemática (conhecida como lei Antibullying), que visa combater todo ato de violência física ou psicológica, intencional e repetitivo […], praticado por indivíduo ou grupo, contra uma ou mais pessoas, com o objetivo de intimidá-la ou agredi-la, causando dor e angústia à vítima, em uma relação de desequilíbrio de poder entre as partes envolvidas (art. 1º, par. 1º). Aqui se inclui tanto violência física, como também verbal, moral, sexual, social, psicológica, material ou virtual.
Do mesmo modo, as teorias de gênero fundamentaram a institucionalização do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos e, portanto, o termo gênero não pode ser arbitrariamente excluído, tendo por base argumentos insustentáveis do ponto de vista científico.
4) Ciência, religião e política são campos distintos
Conhecimentos científicos não podem ser arbitrariamente reinterpretados por outros campos sociais, na medida em que partem de princípios, métodos e fins distintos. Além disso, num país laico, como o Brasil, devemos tanto respeitar toda e qualquer confissão religiosa, como também garantir que não haja nenhuma interferência, de base religiosa, nas orientações, ações e documentos públicos, desenvolvidos pelo Estado, em prol do bem comum.
5) Dados exigem respostas.
Diversas pesquisas científicas têm demonstrado a urgência de enfrentar as formas diversas de discriminação, dentro e fora da escola. Por exemplo, pesquisa realizada pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE), a pedido do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), intitulada Preconceito e Discriminação no Ambiente Escolar, revela que 96,5% dos/as entrevistados/as têm preconceito com relação a portadores de necessidades especiais, 94,2% têm preconceito étnico-racial, 93,5% de gênero, 91% de geração, 87,5% socioeconômico, 87,3% com relação à orientação sexual e 75,95% têm preconceito territorial. Esta pesquisa foi desenvolvida com uma amostra representativa de estudantes, pais e mães, diretores/as, professores/as e funcionários/as em escolas públicas de todo o país.
Outra pesquisa, coordenada pela socióloga Miriam Abramovay, com apoio do Ministério da Educação, da Organização dos Estados Íbero-americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura (OEI) e da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO), intitulada Juventude nas Escolas, informa que a homofobia é um dos principais tipos de preconceito na escola. Dentre os estudantes, quase 20% (19,3%) afirma não querer homossexuais, transexuais e travestis como colegas de classe, sendo a rejeição maior naqueles do ensino médio.
A literatura científica, baseada em pesquisas empíricas e em leituras históricas e epistemológicas, explicita os problemas éticos e conceituais da perseguição ao conceito de gênero, nas diferentes instâncias legislativas. Leis que ignorem a produção de conhecimento científico chancelam a violência e a discriminação e deslegitimam a cidadania de um enorme contingente de pessoas.
O silêncio (ou a omissão) diante desses dados é cúmplice da violência.
Não há uma ideologia de gênero e diversidade sexual, o que há são estudos de gênero e sobre sexualidade, produzidos a partir de critérios e procedimentos científicos, amplamente debatidos no universo acadêmico, na sociedade civil e nas instituições do Estado. Apesar desse campo de estudos, como, aliás, qualquer outro campo profícuo de conhecimento científico, nem sempre obter acordos no que diz respeito aos seus conceitos e resultados, há um consenso fortemente consolidado nas pesquisas no que diz respeito à presença das violências de gênero e da homofobia não somente nas escolas e nas universidades, como em toda sociedade, e, diante deste quadro, há necessidade de respostas urgentes e efetivas; não podemos retroceder.
Neste sentido, solicitamos de Vossas Senhorias que se manifestem contra qualquer ato que vise a exclusão do termo gênero de políticas públicas nacionais, afinal são propostas que visam, antes de tudo, à promoção da igualdade de direitos entre homens e mulheres e contra qualquer forma de discriminação ou violência.
Assinam este documento:
Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO)
Fórum Gênero e Sexualidade na Educação
Movimento Por todas as famílias
CEPIA Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação (Rio de Janeiro)
CFEMEA – Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Brasília)
CIFG – Centro do Interesse Feminista e de Gênero (UFMG, Belo Horizonte)
CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (UERJ/ IMS, Rio de Janeiro)
DEGENERA – Núcleo de Pesquisa e Desconstrução de Gêneros (UERJ, Rio de Janeiro)
Demodê – Grupo de Estudos sobre Democracia e Desigualdades (UnB, Brasília)
GEMA – Núcleo Feminista de Pesquisas em Gênero e Masculinidades (UFPE, Pernambuco)
GENI – Grupo de Estudos de Gênero, Sexualidade e(m) Interseccionalidades na Educação e(m) Saúde (UERJ, Rio de Janeiro)
GEPEDIC – Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação, Diversidade e Cultura (UNESPAR/ Paranavaí)
GEPEM – Grupo de Estudos e Pesquisas “Eneida de Moraes” sobre mulheres e gêneros (UFPA, Belém)
GRUPESSC – Grupo de Pesquisas em Saúde, Sociedade e Cultura (UFPB, João Pessoa)
Grupo de Estudos em Gênero, Política Social e Serviços Sociais, (UnB, Brasília)
Grupo de Estudos em Saúde Coletiva, Educação e Relações de Gênero (USP, São Paulo)
Grupo de Pesquisa Sexualidades, Cuidado e Políticas Públicas (UFU, Uberlândia)
GESEC – Grupo de pesquisa Gênero, Sexualidade e Estudos Culturais (UFS, Aracaju)
Grupo de Pesquisas Diversiones (UFPE, Recife)
Grupo de Pesquisas sobre Gênero, Corporalidades, Direitos Humanos e Políticas Públicas (UEL, Londrina)
Instituto PAPAI (Recife)
LABTECC – Laboratório de Tecnologias, Ciências e Criação (UFMT, Cuiabá)
LEG – Laboratório de Estudos de Gênero, Poder e Violência (UFES, Vitória)
LIEIG – Laboratório Interdisciplinar de Estudos e Intervenção em Políticas Públicas de Gênero (UFRJ, Rio de Janeiro)
MARGENS – Modos de vida, família e relações de gênero (UFSC, Florianópolis)
Não Cala! Rede de Professoras e Pesquisadoras da USP pelo fim da violência sexual e de gênero (USP, São Paulo)
NAU Núcleo de Análises Urbanas (FURG, Rio Grande, RS)
NEG – Núcleo de Estudos de Gênero (UFPR, Curitiba)
NEIM – Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (UFBA, Salvador)
NEPeM – Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre a Mulher (UnB, Brasília)
NESEG – Núcleo de Estudos de Sexualidade e Gênero (UFRJ, Rio de Janeiro)
NUCED – Núcleo de Estudos sobre Drogas (UFC, Fortaleza)
Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher (UFMG, Belo Horizonte)
NESP – Núcleo de Estudos em Saúde Pública (UFPI, Parnaíba)
Núcleo Religião, Gênero, Ação Social e Política (UFRJ, Rio de Janeiro)
NUDERG – Núcleo de Estudos sobre Desigualdades Contemporâneas e Relações de Gênero (UERJ, Rio de Janeiro)
NUH – Núcleo de direitos humanos e cidadania LGBT (UFMG, Belo Horizonte)
NUMAS – Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença (USP, São Paulo)
NUPEGE – Grupo de Pesquisas e Estudos em Gênero (UFRPE, Recife)
NUPSEX – Núcleo de Pesquisa em Sexualidade e Relações de Gênero (UFRGS, Porto Alegre)
PAGU – Núcleo de Estudos de Gênero (Unicamp, Campinas)
(R)existências e metaquestões dos marcadores de diferença (UEL, Londrina)
Ser-Tão – Núcleo de Pesquisas em Gênero e Sexualidade (UFG, Goiânia)