OFÍCIO ABHT Nº 0047/2013
À Vossa Excelência Senador Eduardo Suplicy,
A Associação Brasileira de Homens Trans (ABHT)[1] foi socialmente fundada em 30 de junho de 2012, hoje em dia possuímos mais de cento e cinquenta homens trans associados em todo o Brasil, e como missão visamos a promoção e a reivindicação dos direitos humanos, sociais e civis da população de homens trans, todas as pessoas trans e LGBT no Brasil.
Nesta intenção, em vistas da necessidade de garantia dos direitos humanos da população trans no Brasil, e não da negação destes, e diante da iminente possibilidade de votação em plenária do Projeto de Lei nº 72/2007, de autoria do ex-Deputado Federal Luciano Zica, viemos através deste apresentarmos nosso posicionamento contrário à aprovação do mesmo e a favor de um substitutivo, de acordo com os motivos apresentados a seguir.
É importante citarmos inicialmente que nos preocupa a rapidez com que a matéria do Projeto de Lei foi trabalhada no âmbito do Senado, e da delicadeza que se trata de garantir direitos humanos, sociais e civis à população trans em nosso país. Principalmente considerando a complexidade que se trata da compreensão cultural da sociedade brasileira no geral e em diversos setores e camadas desta a respeito das experiências de vida e construções de identidades da população trans, que é a população diversa em identidade de gênero, e que por assim ser se difere da população de gays e lésbicas. Nosso grande receio é que, por uma ausência de um imprescindível olhar mais aprofundado a respeito do assunto e em função do pouco tempo trabalhado na matéria, aconteça a aprovação de uma lei que na verdade fira a Dignidade Humana das pessoas trans em nosso país, como compreendemos ferir o PL nº 72/2007.
As pessoas que fazem parte da população trans[2] possuem uma identidade de gênero, ou seja, uma identificação interna e individual de masculinidade e/ou feminilidade que diverge daquela que é compreendida culturalmente pela nossa sociedade enquanto correspondente ao sexo biológico em que nasceram. Um fenômeno natural e normal que sempre aconteceu em todos os períodos históricos e em todos os continentes do mundo, tendo apenas se configurado como substancialmente relacionado a transformações dos aspectos sexuais corporais há menos de duzentos anos.
Infelizmente, como também ocorreu com a população diversa em orientação sexual (gays, lésbicas, homens e mulheres bissexuais), nós, pessoas trans, fomos patologizadas e psiquiatrizadas oficialmente pela medicina ao longo do século XX, a partir de estudos que já vinham do século XIX, num momento histórico de crescimento dos saberes científicos e médicos; mas também que realizou a patologização das sexualidades diferentes daquela considerada heterossexual e cisgênera, focada na reprodução biológica e na produção de um modelo de família patriarcal.
A respeito destas patologizações e psiquiatrizações de nossas sexualidade diversas em orientação sexual e identidade de gênero, todos necessitamos concordar que trata-se de preconceito homofóbico e transfóbico. Do mesmo modo precisamos recordar que a história da psiquiatria e da medicina inúmeras vezes se colocou como equivocada, trabalhando os sujeitos humanos de forma desumanizada, e dando-lhes uma atenção à saúde iatrogênica, ou seja, não realizando a real promoção da saúde do indivíduo e de coletividades e sim prejudicando-a.
Na década de 1990, a Organização Mundial de Saúde retirou as homossexualidade do rol de patologias psiquiátricas do Código Internacional de Doenças (CID). No entanto as transidentidades ainda constam no CID, dentro do rol de transtornos mentais, com os códigos F64.0 (Transexualismo), F64.1 (Travestismo bivalente), F64.2 (Transtorno de identidade sexual na infância) e outros. Como se nossa forma de sermos seres humanos fosse originária de ou motivada por uma patologia psiquiátrica!
Isso é uma ofensa à nossa Dignidade Humana e nossos direitos humanos, sociais e civis, posto que não só a existência das categorias psiquiátricas nos conota enquanto doentes mentais, mas também porque retira nosso direito de autonomia sobre o nosso corpo quem tem o poder de decisão sobre o nosso próprio corpo são profissionais da saúde , e porque contribui para retirar nosso direito de autodeterminarmos quem nós somos. Afinal se somos doentes psiquiátricos, não temos capacidade de dizermos quem somos.
E esse é o problema que o supracitado Projeto de Lei nº 72/2007 se aprovado faria a manutenção: que o Estado Brasileiro passe por lei a nos considerar incapazes de dizermos quem somos, que identidade de gênero possuímos e que nome gostaríamos de sermos chamados, nos tutelando não só juridicamente, mas psiquiatricamente também.
Até que seja aprovada uma lei que nos dê o direito de retificarmos nossos registros civis sem precisar de tutela jurídica, nós ainda a teremos, conforme a Lei de Registros Públicos. No entanto o cenário que desejamos e que estamos conseguindo e intencionando conquistar em várias partes do país é desmedicalizar o Judiciário retirando a necessidade de apresentar laudos psiquiátricos atestando esta suposta doença que a medicina ainda diz que temos nas petições de retificação de registro civil das pessoas trans; e estamos obtendo sentenças favoráveis.
O Projeto de Lei nº 72/2007 faria a manutenção da tutela jurídica que já somos obrigados a nos submetermos, o que não acrescentaria nada de novo. Instalaria aquilo que não desejamos instalar que é a tutela médica-psiquiátrica definitivamente por lei. Sem citar que o projeto nem prevê retificação de sexo no registro civil.
Ou seja: este é um projeto de lei que não precisamos e ele por si só já representa um retrocesso à nossa garantia de direitos humanos, sociais e civis. Estancaríamos no Judiciário aquilo que intencionamos e já estamos conseguindo dar passos, que é retirar a tutela médica e psiquiátrica do nosso direito de termos legalmente nossa identidade de gênero reconhecida por meio do nome e o sexo civil. Legitimaria que o Estado Brasileiro nos considere incapazes.
Acreditamos que o melhor caminho para garantir os direitos humanos, sociais e civis da população trans em nosso país é lutar pela garantia de nossa autonomia: de podermos nos expressar, nos vestir, ter o corpo que desejamos e nos denominarmos como desejamos de forma autônoma e sermos respeitados desta forma, pela nossa expressão de humanidade. Não há ninguém melhor e mais legítimo que o próprio indivíduo para dizer quem ele mesmo é. Isso sim para nós é ter Dignidade Humana. Isso sim para nós é ter nossos direitos humanos respeitados.
Deste modo então, solicitamos à Vossa Excelência Senador Eduardo Suplicy: 1) Retire da pauta de votação o PL nº 72/2007; 2) Realize audiência com representações de organizações nacionais trans, acadêmicos das ciências jurídicas e humanas e juristas que atuam na área para ampliar o debate a respeito de como seria ideal um projeto de lei que garanta que possamos realizar a retificação de registro de forma mais digna e garanta melhor nossos direitos humanos; 3) Considere a sugestão da análise do texto do Projeto de Lei nº 5.002/2013 de autoria dos Deputados Erica Kokay (PT-DF) e Jean Wyllys (PSOL-RJ) protocolado no início deste ano e baseado no texto da Lei de Identidade de Gênero da Argentina, atualmente a lei para garantia dos direitos de pessoas trans mais avançada do mundo. Para que assim, conforme nos posicionamos a favor anteriormente, possa ser pensada a possibilidade a apresentar um substitutivo ao PL nº 72/2007.
Certos de podermos contar com Vossa compreensão, nos disponibilizamos para diálogos posteriores a respeito da garantia dos direitos da população trans no Brasil.
Atenciosamente,
Leonardo Farias P. Tenório
Presidente da Associação Brasileira de Homens Trans
Maiores informações: http://homenstrans.blogspot.com.br/